Autores: Fernando Rodrigues Martins e Guilherme Magalhães Martins
A popularização de jogos e apostas online e os efeitos econômicos, sociais e de saúde deles decorrentes, em tempos atuais, considerando especialmente a extrema facilitação de acesso e a dependência psíquica dos consumidores, reacende a necessidade de adoção de regulação mais incisiva dessa modalidade.
Segundo a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) [1], em 2023 14% da população, ou seja, cerca de 22 milhões de pessoas realizaram no mínimo uma aposta nas chamadas bets (aplicativos online), o que superou muitos outros produtos de investimentos usuais neste setor econômico. Enfim, algo em torno de R$ 110 bilhões no país por ano. [2]
Enquanto o Banco Central informa que somente em agosto de 2024 foram transferidos R$ 3 bilhões na forma de pagamento Pix para as plataformas digitais de jogos e apostas, lado outro observam-se crescentes relatos de dramas humanos concernentes a essa categoria “viral”. Geralmente assalariados, os usuários e usuárias das “bets” perdem recursos, deflagrando grau de endividamento avançado e renda familiar totalmente comprometida. [3]
‘Ferramentas’ do vício
Paralelo às “bets”, igualmente são impactantes as modalidades de jogos e apostas eletrônicas outsiders [4], assim compreendidas aquelas que não têm nenhuma autorização prévia, sede local, compromisso com a legislação brasileira, com atuação pelas “nuvens” e desrespeitosas à necessária compreensão de “soberania digital”, utilizando componentes de estratégias psicológicas e tecnológicas sobre os consumidores, causando dentre elas a ludopatia.
O desafio nas cercanias nacionais é que muitos consumidores dessas plataformas não se contentam em gastar apenas recursos familiares mensalmente auferidos e vão bem adiante disso: realizam créditos consignados e se valem dos programas de transferência de renda (dentre eles o bolsa-família) para satisfação de “desejo” criado e incutido por tais fornecedores.
Somem-se cinco ferramentas que catapultam essa nova “pandemia”: a introdução de modelo de “gamificação” pelo mundo digital na sociedade; o aproveitamento da forte inclinação nacional para as torcidas aos times de futebol e os campeonatos simultâneos realizados e transmitidos na televisão; a publicidade abusiva e enganosa verificada nesse meio; a ausência de prática de crédito responsável por algumas instituições financeiras; e a adoção, pelas plataformas digitais, do conceito de “economia da atenção”, o que significa uma “luta épica para entrar em nossas cabeças” [5], quando nossa consciência se torna mercadoria, considerando a vontade [6] e racionalidade humana limitadas [7].
Não estamos apenas “plataformizados” [8] e com a atenção custodiada e monitorada. Estamos também “gamificados”, porque se antes os modelos de “games” foram utilizados para fins tão solidários como na facilitação da educação e do aprendizado [9], hoje tem exercício desviado, deixando de educar para endividar e viciar.
O tema atinente a apostas e jogos sempre é de inquietude, dividindo opiniões no iter histórico da humanidade por questões religiosas e morais e, igualmente, no âmbito jurídico representando clivagens que perduram desde Roma até a contemporaneidade. No Brasil, há antecedentes de vedações, permissibilidades e até neutralidade no tratamento desses tipos de relações, que na verdade, do ponto de vista do direito privado, têm natureza jurídica de contrato.
Vale ressaltar, entretanto, que a “esfera lúdica” da pessoa deve ser preservada, porque imanente ao livre desenvolvimento da personalidade. Destaca-se justamente nesta perspectiva o pensamento do historiador holandês Johan Huizinga que, coordenando os conceitos de “homo faber” com “homo ludens” e aproximando os prazeres da cultura e da própria civilização humana, contribuiu na assertiva de que os jogos eram inatos ao homem [10].
Marco regulatório
A perspectiva quanto aos jogos e apostas online não é a de vedação ou proibição, mas a exigência de práticas responsáveis que devem ter início justamente sobre os desenvolvedores dEm 2018, a Lei nº 13.756 foi sancionada e com ela dá-se início às apostas lotéricas quotas fixas para eventos “reais” esportivos a partir de lances presenciais ou virtuais (artigo 29) em conjunto com outras modalidades. São quotas fixas, já que o prêmio é predeterminado pelo empreendedor ao apostador em caso de acerto. A Lei nº 13.756/2018 representou marco na regulação de jogos e apostas, porque excluía os temas esportivos da anterior proibição como jogos de azar, contida na Lei de Contravenções Penais.
Em 2023 passou a viger a Lei 14.790 que dispõe exclusivamente sobre a modalidade de apostas quotas fixas. Essa lei modificou em parte a Lei 5.768/71 (que vedava prêmios ou brindes a título de propaganda e tratava da captação de poupança popular) e trouxe outra novidade: a possibilidade de apostas e jogos para qualquer cenário, não se fixando apenas em temas esportivos, conforme se depreende da expressão e conceito de jogos online.
O atual modelo legislativo revela a existência de regulação que trouxe à legalidade jogos e apostas — as quais no século anterior seriam tidas como vedadas e proibidas, dado o conceito de “jogos de azar” — contudo, é claramente caracterizado pela insuficiência das medidas restritivas dispostas. Basta se ater aos relatos noticiados sobre famílias em verdadeira ruína, ainda mais quando não se fez referências ao superendividamento de mais de 40 milhões de pessoas no Brasil, o que é incompatível com um país de apostadores.essa atividade, adotando-se regulação compatível, educadora, preventiva e precautória.
A regulação deveria ser precedida, antes da aprovação e sanção, da constituição de meios fiscalizatórios rígidos, adequados, sincronizados e eletrônicos capazes de evitar o “estado viral dos jogos patológicos“, o que até agora não ocorreu.
Evidente que se o propósito é aumentar a arrecadação em tributos e evitar “jogos na clandestinidade”, a vedação não se apresenta como opção, conquanto a regulação insuficiente também não traduz a resposta adequada. Há que se preservar a “dimensão lúdica do consumidor“, todavia, mediante o cumprimento dos deveres fundamentais de proteção pelo Estado (CF, artigo 5º, inciso XXXII).
Preservação do aspecto lúdico
O lúdico é manifestação da liberdade humana. Através do jogo e do esporte, a pessoa transborda suas capacidades, habilidades sociais e emocionais, e, acima de tudo, expressa a inerente individualidade. A dimensão lúdica está intrinsecamente ligada ao conceito de livre desenvolvimento da personalidade, que é princípio fundamental dos direitos humanos [11].
O acesso às atividades lúdicas e esportivas permite que as pessoas se expressem, construam suas identidades e se relacionem com os outros, contribuindo para o fortalecimento da cidadania e da convivência social.
Entretanto, as engenharias e arquiteturas digitais, atuando nos padrões do “capitalismo de vigilância” [12] e “economia da atenção” [13], simplesmente apagam a consciência de tantos e impõem a incapacidade de lucidez. É dizer basicamente que muitos abandonam a própria vida, para viver o planejamento orquestrado pelas plataformas.
Deve-se ter presente que o “lúdico” está presente e é preservado no sistema jurídico. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º, estabelece o direito ao lazer como um dos direitos sociais. Além disso, o artigo 217 dedica-se à promoção do esporte, reconhecendo-o como bem de interesse público. A combinação desses direitos fundamentais reflete a compreensão de que a prática de atividades lúdicas e esportivas é essencial para a formação de um cidadão pleno, capaz de exercer sua liberdade de maneira consciente e responsável.
As legislações que pretendam legalizar jogos e apostas online não podem escapar de metodologia adequada: aquela transversal, ou seja, incidir não apenas no campo jurídico, mas nas esferas políticas, econômicas, culturais, educacionais, e, sobretudo, ter em perspectiva a multidisciplinariedade. Foi assim com o Código de Defesa do Consumidor, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto da Pessoa com Deficiência e Lei Geral de Proteção de Dados.
A disposições devem alcançar o “todo” e não somente o setor, caso contrário as patologias, as ludopatias irão continuar. A mudança de rumo tem que ser geral e ao mesmo tempo acolhedora. Se os efeitos dos jogos e apostas são tão drásticos e atingem 14% da população, o “combo autorizativo” deve ser melhorado, buscando os deveres de proteção de forma suficiente.
A presença constante de anúncios, publicidades e recomendações personalizadas levam os usuários a consumirem produtos e serviços de forma impulsiva. São estímulos excessivos, aliados ao desejo de pertencimento e à pressão social que influenciam as escolhas, fazendo com que os consumidores participem reiteradamente de disputas como autoafirmação.
Esse contexto se agrava em ambientes onde o consumo de produtos, como roupas, eletrônicos e serviços digitais, é amplamente promovido por influenciadores. A associação entre a aprovação social e o ato de consumir pode levar os usuários a tomarem decisões baseadas mais em emoções do que em análises racionais.
Enquanto no Código Civil (artigo 814) a reação quanto aos jogos e apostas se dá no campo da eficácia, retirando a responsabilidade pelo pagamento — o que não é o caso das “bets”, já que agora são modalidades “autorizadas legalmente” — no CDC a resposta se assenta no plano da nulidade e da responsabilidade civil.
‘Neurodano’ causado pelas plataformas
Aliás, a prática de jogos e apostas online reflete clara relação de consumo, tanto porque é prestação de serviço, contando com consumidores e fornecedores, e se não bastasse com reconhecimento na própria Lei 14.790/23 (artigo 27). Ora, aplicando-se o CDC fica mais nítido que o abuso sobre a vontade do consumidor com a prática de jogo patológico (que é vedada pela lei das “bets”, vide artigo 8º, inciso III) leva aquela relação jurídica à nulidade, nos termos do artigo 51, inciso IV do CDC, tudo isso à luz da interpretação mais favorável ao consumidor (artigo 47, CDC).
Ademais, no âmbito dos direitos básicos do consumidor não se deve esquecer do direito à proteção da vida, saúde e segurança. E neste caso, podemos estar diante do chamado “neurodano“, nada mais que a lesão à capacidade de manter a atividade mental protegida e hígida [14]. O que pode ser percebido quando do alto grau de dependência do consumidor nas plataformas de jogos e apostas, que lhe retiram a possibilidade de tomada de decisão racional.
Esse “neurodano”, como se viu, traduz-se no ataque pelas plataformas ao livre desenvolvimento da personalidade do consumidor, à capacidade de controlar a integridade mental e a identidade digital, achatando-se o direito à liberdade de pensamento e o livre-arbítrio para escolher as próprias ações. É dever do jurista comparar as liberdades das plataformas e dos utentes e perceber que a liberdade da primeira torna cativa a liberdade do segundo.
Trata-se de dano de natureza extrapatrimonial e com possibilidades de projeções extrapatrimoniais, até porque, nesses casos, os jogos patológicos se encaixam perfeitamente o preceito proibitivo de que é vedado ao fornecedor “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”, artigo 39, inciso IV do CDC.
Portanto, além de nulidade, é o caso de responsabilidade civil, nos termos do artigo 14 c/c artigo 6º, inciso I e artigo 39, inciso IV do CDC.
Tudo deveria e poderia ser modificado se o PL 3.514/15 já estivesse aprovado, possibilitando não apenas a proteção do consumidor no campo das apostas, mas em toda modalidade de comércio eletrônico.
Referências Bibliográficas
[1] https://www.anbima.com.br/data/files/9D/52/B3/C7/38C0091004DA0EF8EA2BA2A8/Relatorio-Raio-X-do-Investidor-7.pdf, acesso em 29.09.24.
[2] MARQUES, Claudia Lima; SPITZ, Lidia. Proteção ao consumidor que aposta em bets: comentários à Portaria SPA/MF nº 1.231, de 31 de julho de 2024. In: RDC. v. 155. São Paulo: Revista dos Tribunais.
[3] https://www.terra.com.br/esportes/mercado-bilionario-de-bets-tira-recursos-do-consumo-e-gera-crises-de-divida-e-saude-mental-no-brasil,d4a06f83e8f8eaf29a41df72d48df98brv7ehw7w.html. Acesso em 30-09-2024.
[4] https://www.terra.com.br/economia/jogo-do-tigrinho-mulher-toma-emprestimo-perde-tudo-em-aposta-e-planeja-execucao-de-credor-para-nao-pagar-divida
[5] WU, Tim. The attention merchants: the epic struggle to get inside our heads. London: Atlantic Books, 2016.
[6] MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2023. p.03-04
[7] SIMON, Herbert A. The New Science of Management Decision. Nova York: Harper & Brothers Publishers, 1960.
[8] MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães, NOGUEIRA, Marco Aurélio. Pós-colonialismo digital e justiça descolonial: desidentidade, datificação, alienação. In: RDC. v. 152. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024.
[9] NICHOLSON, S. A RECIPE for meaningful gamification. In T. Reiners & L. A. Wood (Eds.). Gamification in education and business. New York, NY: Springer, 2015.
[10] Huizinga, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva. 2014.
[11] MARTINS, Fernando Rodrigues. Código civil comentado: direito privado contemporâneo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2023, p. 63.
[12] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
[13] WILLIANS, James. Liberdade e resistência economia da atenção: como evitar que as tecnologias digitais dos nossos verdadeiros propósitos. Trad. Christian Schwartz. Porto Alegre: Arquipélago, 2021.
[14] GENSER, Jared; DAMIANOS, Stephen; YUSTE, Rafael. Safeguarding Brain Data: Assessing the Privacy Practices of Consumer Neurotechnology Companies.” Disponível em: [www.perseus-strategies.com/pontent/uploads/2024/04/FINAL_Consumer_Neurotechnology_Report_Neurorights_Foundation_April-1.pdf]. Acesso em: 26.05.2024.
Sobre os autores
Fernando Rodrigues Martins
é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
Guilherme Magalhães Martins
é doutor e mestre pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pós-doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor associado de Direito Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense, segundo vice-presidente do Brasilcon. e procurador de Justiça (RJ).