
Se o Supremo mantiver a regra como está e optar pela constitucionalidade, isso equivale a chancelar o rumo que estamos tomando agora.
Foi um importante passo o voto do ministro Dias Toffoli no sentido da inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, o que não importa, de maneira alguma, em restrição à liberdade de expressão, mas apenas ao seu abuso.
Desde antes da lei, defendíamos que o regime que estava sendo construído pela interpretação do Código do Consumidor e outras leis sobre a então incipiente realidade das redes sociais.
Após a notificação extrajudicial sobre a ilicitude do conteúdo, o provedor poderia ser responsabilizado se não o retirasse em tempo razoável.
Adotada a lógica da responsabilidade independente de culpa do CDC, o dano somente poderia ser imputado à plataforma com a notificação, pois somente após notificada é que seria razoável esperar do fornecedor alguma conduta.
Não seria algo automático, não implicaria um dever geral de vigilância do fornecedor e jamais implicaria censura, pois a plataforma poderia coibir abusos de pessoas que notificassem para retirar um conteúdo sem razão e decidir mantê-lo sem serem responsabilizadas. Por exemplo, um consumidor reclama de um serviço mal prestado, a plataforma é notificada, mas mantém o conteúdo, pois entende que não é legítima essa manutenção. Agora, ainda que tenha razão em reclamar, o consumidor não pode praticar homofobia contra o vendedor, pois claramente está cometendo um ilícito sob o pretexto da “liberdade de expressão”.
E o artigo 19 tem sido indevidamente invocado por plataformas de comércio eletrônico, com amparo na jurisprudência dos tribunais superiores, muito além da liberdade de expressão.
E com esse suposto fundamento, o sistema da obrigatoriedade de notificação judicial como regra do artigo 19, MCI, representou um grande retrocesso. Trouxe na prática um verdadeiro escudo para as plataformas, pois elas próprias interpretam os conteúdos, hoje, inclusive, por tecnologias sofisticadas que retiram muito rapidamente o que é evidentemente ilícito, mas não podem ser responsabilizadas sem ordem judicial.
Então, são livres para permitir, impulsionar e monetizar em tese qualquer conteúdo, lucrando muito com algo sem assumir qualquer risco e responsabilidade pelo que circula. Uma autorregulação desregulada, elevando seu poder privado a um patamar quase que “acima da lei”.
E quanto quem deveria assumir um risco não o assume, toda a sociedade perde.
Assim, o artigo 19 nasceu inconstitucional, mas ao longo dessa última década, proliferou a difusão em larga escala de conteúdos tóxicos, discurso de ódio racista, homofóbico, misógino, xenofóbico e, infelizmente, muitos absurdos parecem ter sido normalizados. Milicias digitais com ameaças à democracia. Riscos à saúde pública (ou será que já esquecemos da pandemia?). Tudo em nome de uma liberdade de expressão que nunca foi absoluta, mas, na internet, parecemos estar em uma terra sem lei.
Logo, se declarado inconstitucional, não haverá censura, não vai ser o fim da internet livre e outros argumentos “ad terrorem” que circulam por aí.
As plataformas terão de adequar (como já tem adequado) seus termos de uso para um ambiente mais transparente quanto ao que retiram unilateralmente, deixam circular livremente e impulsionam, e quacionando sua responsabilidade com o risco do serviço que fornecem.
Mas, até para não representar uma ruptura abrupta com o que se construiu até aqui e ser um salto no escuro (pois ninguém sabe o que poderia vir a substituir o artigo 19), uma interpretação conforme do dispositivo poderia sintetizar alguma espécie de consenso com o que temos hoje e deixarmos para o legislativo discussões futuras, como a que está ocorrendo com o livro de direito digital da reforma do Código Civil no Senado. Que aliás, traz uma proposta de regime de responsabilidade das redes sociais alinhada com o recente regime europeu do Digital Services Act e traduz um ótimo caminho para o Brasil.
Se o STF optar por essa interpretação conforme, a solução seria compreender que discurso de ódio, racismo, homofobia, misoginia, xenofobia, proteção de crianças e adolescentes, ataques sistemáticos à democracia — por perfis falsos, principalmente, mas também pelo impulsionamento de conteúdos claramente antidemocráticos — e também riscos à saúde pública — como nos tratamentos de saúde claramente rechaçados pela ciência — e ao meio ambiente — tal qual os “movimentos” para realização de queimadas — não são o legítimo exercício da liberdade de expressão e não podem ser protegidos pelo artigo 19 do MCI, caindo na regra já existente no artigo 21 para conteúdo sexual sem autorização ou a exceção dos direitos autorais (art. 19, §2º).
Uma coisa é certa. Se o Supremo mantiver a regra como está e optar pela constitucionalidade, isso equivale a chancelar o rumo que estamos tomando agora. O termo “brain rot” (algo como “podridão cerebral”) foi eleita a palavra do ano pelo Dicionário de Oxford neste ano e é decorrente direto do consumo excessivo de conteúdos de baixa qualidade nas redes sociais.
Ou atribuímos responsabilidades condizentes riscos criados nesses ambientes ou seguiremos perdendo coletivamente.
Autores:
Guilherme Magalhães Martins: procurador de justiça do MPRJ e professor de direito civil da UFRJ.
João Victor Rozzatti Longhi: defensor público no estado do Paraná.
Fonte: O Globo